Elo Primitivo

terça-feira, julho 05, 2005

No tempo da delicadeza

05.07.2005
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Paulo Roberto Pires
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“Saravah”, assim mesmo, com agá, não é um documentário, é uma experiência. Para quem gosta minimamente de música, uma experiência de encher ouvidos e ensopar lenços pela qualidade do que se ouve e pela brutal carga emocional das imagens que o francês Pierre Barouh fez no Rio de Janeiro, em 1969, reunindo uma turma da pesada: Pixinguinha, João da Baiana, Maria Bethânia e Paulinho da Viola, todos apresentados a ele por Baden Powell, ídolo e amigo.
Barouh, para quem não está ligando o nome à pessoa, é cantor, autor e compositor, autor do indefectível tema de “Um homem e uma mulher”, de Claude Leouch. Mas muito antes de fazer “badabadabá” já era apaixonado pela música brasileira – na trilha sonora do filme, aliás, arrumou um jeito de enfiar “Saravah”, nome francês do “Samba da benção”. Levou essa adoração às últimas conseqüências, conseguiu enturmar-se com seus ídolos e fez deste emocionante filme, que sai agora em DVD pela Biscoito Fino, mais do que um registro documental: trata-se de uma declaração de amor, das mais sinceras e comoventes, à música brasileira.
No melhor sentido do termo, “Saravah” é um filme amador, rodado no tempo da emoção. Não há narrações, apresentações formais dos personagens, nada. Barouh está em cena quase o tempo todo, tendo Baden como primeiro e principal interlocutor. Faz pequenas “entrevistas” com o violonista, que responde em português às suas perguntas em francês, e mostra-se todo o tempo em humilde reverência a alguns dos maiores nomes da música brasileira, dos consagrados aos então estreantes.
No subúrbio carioca de Olaria, encontra Pixinguinha em sua casa, na rua já rebatizada como “Rua Pixinguinha”. Num boteco, o saxofonista conta sua viagem a Paris com os “Oito Batutas”, concluindo que a diferença do português para o francês é uma questão “de acento”: “Lá é Batutá”. No quintal da casa de Pixinguinha, João da Baiana, impecavelmente vestido de terno de linho branco, sapato bicolor e gravata borboleta, explica a diferença da macumba para o candomblé cantando e acompanhando-se com prato e faca – cena que já valeria os 62 minutos do documentário.
Num almoço debaixo de árvores, um Paulinho da Viola aos 27 anos, sem camisa, dedilha o violão ao lado de uma Maria Bethânia menina, 23 anos. Criterioso, Paulinho explica a Barouth o que o diferencia da cantora baiana: “Sou um sambista de escola de samba”, diz ele, que imita ao violão as harmonias de Nelson Cavaquinho, canta “Minhas madrugadas”, “Coração vulgar” e “Coisas do mundo minha nega”. Com Bethânia, há um antológico dueto em “Rosa Maria”. A viagem de Barouh não se limita à música tradicional. Bethânia mostra as “novidades” da música brasileira: “Baby”, “Tropicália” e “Pra dizer adeus”. Aí o arrepio fica por conta da formação que a acompanha: Luis Carlos Vinhas no piano acústico e Raul do Souza no trombone. Estas faixas deveriam ser lançadas em áudio: são um primor de improviso e arranjo, que culmina com uma versão lindíssima de “Frevo nº 1 do Recife”, de Antonio Maria. Como uma síntese da tradição e da modernidade, Baden acompanha-se pela excelente Márcia e quarteto numa versão jazzística de seus sambas africanizados, além dos improvisos sobre “Lamento”, o clássico de Pixinguinha que, num outro momento do filme, ele improvisa ao lado do próprio, com João da Baiana acompanhando-os.
Se nada disso bastasse, Barouh documentou ainda os desfiles daquele ano da Mangueira e do Império Serrano – esta última com o enredo “Heróis da Liberdade”. O que foi rodado para ser documento hoje parece sonho, os passistas gingando devagar, com poucas alegorias, as escolas em suas cores originais, belas em sua simplicidade. Ao assistir a “Saravah” em 2005 vê-se, ainda, a enorme sensibilidade do diretor para escolher personagens. Baden já era unanimidade, mas Bethânia e Paulinho ainda davam os primeiros passos de suas carreiras, nada garantia que fossem tão longe com tanta qualidade, que chegassem à sua maturidade como dois dos artistas mais íntegros da música brasileira. E não deixa de ser impressionante ver, retrospectivamente, uma coerência tão intocada.
A viagem de “Saravah” não tem volta. Dá uma nostalgia danada do que não se viveu, uma saudade brutal de tempos míticos, um tempo em que o Brasil e a vida eram mais delicados. E aí, Pierre Barouh acerta em cheio: o que não falta a seu olhar de estrangeiro, livre de exotismos, é justamente a delicadeza de compreender um momento tão fundamental, entre tradição e inovação, reverência e ousadia. Saravá, monsieur!