Elo Primitivo

terça-feira, novembro 08, 2005

Deleuze em movimento

08.11.2005 No Mínimo - Paulo Roberto Pires
Grande filósofo e péssimo profeta, Michel Foucault, o mesmo que saudou as virtudes políticas da subida ao poder do Aiatolá Khomeini no Irã, também vaticinou que o século 20 seria, um dia, “deleuziano”. Semana passada completaram-se dez anos da morte de Gilles Deleuze e, se o último grande período da filosofia ocidental ainda está longe de definir-se por sua influência, é impressionante, sem dúvida, o quanto seu pensamento alastrou-se pelo mundo nas bases que ele mesmo desejava: meio marginal, à deriva dos centros de poder universitário, incorporado por artistas de todas as origens, combatido pelos professores clássicos.Na manhã do domingo, 4 de novembro de 1995, Gilles Deleuze atirou-se da janela de seu apartamento em Paris. Diferentemente de outros filósofos, seu suicídio nada teve de simbólico ou ritual. Discreto a vida toda, preferiu o vazio ao sofrimento atroz de um enfisema que, nos últimos anos, o impedia de dar aulas e, até mesmo, de respirar sem o auxílio de aparelhos. Apenas formalizou o que sua saúde havia decidido, o fim de uma obra vasta, inventiva, em sua maior parte difícil de atravessar, construída em seminários e livros e longe das glórias típicas do competitivo meio intelectual francês.Lançado em 2004 na França (podendo ser encomendado nas importadoras para players que aceitem discos da área 2) o conjunto de DVDs “L’abécédaire de Gilles Deleuze” talvez seja hoje a forma mais fácil de compreender pontos importantes de sua obra e, mais do que isso, assistir como um espectador privilegiado a sua espantosa capacidade de fazer pensar. Nos três discos estão oito horas de conversas de Deleuze com Claire Parnet, uma excelente entrevistadora que assinara com ele o livro “Diálogos” – uma série bem mais curta de entrevistas publicada em livro em 1977. As regras do jogo são muito simples: entre 1988 e 1999, Deleuze, desde sempre avesso ao star system, concordou em gravar com Parnet uma espécie de anti-entrevista. Como numa brincadeira de criança, ela associava uma letra do alfabeto a uma idéia. De “A para animal” a “Z para zig-zag”, 25 temas são propostos a Deleuze, que improvisa encarando a câmara diretamente. Suéter lilás ou camisa branca amarfanhada num casaco de lã cinza, Deleuze está sentado diante de uma lareira. Atrás dele, alguns objetos (às vezes seus óculos descansam ali) e um espelho onde a entrevistadora aparece fugazmente aqui e ali. Em 1994, com a saúde debilitada, o próprio filósofo aceitou desfazer o acordo de só exibir as conversas depois de sua morte e os programas foram ao ar pela rede de TV ARTE. Antes do primeiro capítulo de cada um dos DVDs, uma imagem parece resumir o alcance de seu pensamento: numa sala lotada da universidade de Vincennes, em 1980, Deleuze é apenas uma voz alterada em meio às centenas de estudantes espremidos e fumando compulsivamente, sua mesa completamente cercada de gente. Nada mais distante dos majestosos anfiteatros da Sorbonne ou do Collège de France, a instância máxima do ensino francês, panteão (dos vivos) ao qual ascenderam o próprio Foucault, Roland Barthes, Pierre Bourdieu, Lévi-Strauss e Jean-Pierre Vernant.Nas salas da universidade da periferia de Paris, não havia um palco para o “maître-à-penser” tipicamente francês, mas junto aos estudantes o professor um tanto gauche para os padrões locais: estranhas unhas, enormes, dobrando-se sobre as pontas dedos, compunham um orador tomado pela paixão das aulas – no final dos anos 80, quando seu pensamento havia virado moda, ele irritava-se com a multidão aparentemente disposta a seguir um seminário sobre Leibniz, tema de seu livro “A obra – Leibiniz e o barroco”.Quando as conversas foram gravadas, Deleuze estava em pleno trabalho, com Félix Guattari, de um de seus mais belos livros, “O que é a filosofia?”. A tentativa de mostrar como a filosofia é a arte de produzir conceitos e demonstrar como eles se formam dominam as especulações de um filósofo que, como poucos, fez do rompimento de barreiras disciplinares o principal combustível de seu pensamento. Ao passear pela literatura, as artes plásticas e o cinema, Deleuze via nos artistas menos um objeto para ser “explicado” do que um estímulo para que a filosofia cumprisse seu papel: criasse conceitos que ampliassem nossa capacidade de pensar criativamente e com independência.Como ele mesmo conta, a filosofia é seu terreno original e, por isso, parte de sua obra, sobretudo nos primeiros anos, dedica-se a estudar especificamente pensadores como Bergson, Nietzsche (principalmente), Espinosa, Hume e Leibniz. Tão importante quanto estes são, no entanto, os escritores que sempre permearam suas reflexões: Beckett, Proust, Lewis Carrol (condutor de “A lógica do sentido”), Kafka, William Faulkner e Scott Fitzgerald (tendo escrito sobre este último alguns dos mais belos textos sobre seu mais belo texto, “The crack-up”). Nas artes plásticas, dedicou a Francis Bacon um estudo, a partir do título, espantoso, “A lógica da sensação”.Cada letra de seu alfabeto filosófico é uma viagem por um desses autores e temas, sempre mostrando como a filosofia pode alimentar-se deles para criar sua própria especificidade – para a letra “T”, Deleuze fala de tênis em geral e de Joe McEnroe em particular. Todo conceito, diz ele, parte de uma percepção e com ela está embolado. Logo, um filósofo e um cineasta podem partir exatamente do mesmo impulso para provocarem em quem lê ou assiste o mesmíssimo resultado acionando, no entanto, todo um universo distinto. A matemática ou a pintura não precisam da filosofia para existirem, diz ele, a filosofia é apenas uma das formas de pensar a matemática ou a pintura mas, sobretudo, é uma produção de conceitos. O “Abecedário” parece ter nascido para a era do DVD. Além da qualidade da imagem e do som – por motivos óbvios, Deleuze pigarreia muito, tosse e às vezes tem a fala enrolada – é possível navegar letra-a-letra e, também, fugindo da “ordem arbitrária do alfabeto”, como escreve Parnet e o diretor Pierre-André Boutang, acessar sub-temas específicos de sua fala. Como faixa-bônus, a conferência “O que é o ato de criação?”, uma genial meditação sobre filosofia e cinema gravada, em condições precárias, em 1987.Dez anos depois de sua morte, o filósofo que via a teoria como “uma caixa de ferramentas” que devem ser usadas para mexer no mundo deixa um precioso “kit” em seu “Abecedário”. Uma sucessão de idéias impossível de ser assistida com reverência ou passividade: cada letra é uma provocação que precipita idéias que não pertencem a um mundo elevado e inacessível, mas à capacidade que se pode desenvolver de pensar com autonomia.
P.S. – Como acontece com tudo na internet, felizmente, o abnegado Bernardo Rieux lançou na web a transcrição quase integral, em português, do “Abecedário”. Não substitui a experiência de assistir Deleuze falar, mas é uma continuação, por outros meios, da “caixa de ferramentas”. Experimente.