Elo Primitivo

segunda-feira, março 29, 2004

Flash

Procuro a caneta na bolsa, não encontro. No escuro tudo me parece igual. O tato experimenta objetos em fragmentos; como luzes prateadas de boates. Ba–ton, blo-co. Ouço ecos, vejo zumbis imaginários e não consigo achar uma simples caneta. Ca-ne-ta, repito debilmente, como se o som evocasse a presença do objeto.
Passo perto de um letreiro luminoso, as cores invadem o compartimento obscuro. Levo um choque ao ver minha carteira de identidade: a foto 3x4, sem expressão, pisca para mim. Esfrego os olhos, pressinto o delírio, abro a bolsa devagar. Objetos se movem em câmera lenta. A foto vai decrescendo no tempo a imagem atual, passo a ter cinco anos menos, dez, quinze. Começo a achar que Andy Warhol tirou as fotografias. Minha vida descrita em polaroides que se desfazem e refazem automaticamente.
Tropeço, a bolsa cai no chão. Recoloco tudo no lugar, tento novamente, Nada acontece. Afinal, não passou de ilusão.
Paro em frente à vitrine, uma atmosfera crepuscular. A cortina de contas prateada evoca sonoridades da infância. Vejo meu rosto refletido no espelho. Não me espanto quando a imagem mostra cenas de um cotidiano esquecido. Abro novamente a bolsa, seguro a identidade e indetermino o rumo que ela deve tomar.
Fecho o zíper com mãos coalhadas de purpurinas, minha única reação é sorrir. Este gesto é o passaporte para ficção se fundir à realidade. Passo as mãos pelo rosto e continuo andando, reluzindo no escuro.