Elo Primitivo

quinta-feira, abril 01, 2004

1º de Abril



Ele, jornalista, ambicioso, foto da mulher sobre a mesa. Ela, estagiária, fotógrafa, aliança no dedo da mão direita.
Ele, sala reservada. Ela, mesa na redação. Trabalhavam juntos há seis meses. Primeiro, ela ficou à vontade, depois, embaraçada, depois, sentia através dele. Ele ensinava, depois admirava, depois aprendia; depois não sabiam mais nada. E do nada, deram-se as mãos, e do nada estavam nus, e do nada a vontade cresceu, e cresceu tanto que assustou. Ela, transparente, ele, misterioso; ambos na segurança obscura do não poder.
Experimentaram pele, olhos, mãos e cheiros fundidos em sinestesia. Conversavam, riam, a noite chegava e assim, ansiavam pelo dia seguinte. Sabiam quantas gotas de adoçante cada um gostava no café; além disso, não tinham idéia.
Se ela saía da sala, ele adivinhava se era banheiro ou cigarro. Quando ele coçava o queixo, entre um parágrafo e outro, ela ria, esperando um artigo daqueles. E, caso ela tirasse as sandálias enquanto lia o que ele escreveu, ele suspirava aliviado, feliz com a aprovação.
1º de abril. Escolheram palavras para definir afeições. Palavras que se desdobraram em medo, impotência e desperdícios. Palavras contrárias ao que a linguagem dos corpos insistia em mostrar.
Ele não quis arriscar mudanças em sua vida. Ela foi embora. Os dois, num misto de alívio e tristeza.
Ela passou a fotografar em tempo integral. Até que percebeu o olhar dele nas fotos, como se todas fossem tiradas para destinatário certo. Deu um tempo. Freqüentava exposições, shows, concertos e lá, entre o violino e a flauta: ele. O telefone a hipnotizava, mas insistir com quem se mostrou irredutível parecia um erro. Isso, ela aprendeu em outros tombos. E ele nunca telefonou.
Ele pensou na carreira, na mulher e na mulher.
Ela relembrava o deserto no timbre da voz que quantificou o querer. Decifrava entrelinhas nos escritos dele. Teve certeza absoluta de que nada significou. E toda a tristeza embutida veio à tona. Decidiu ir trabalhar na expedição fotográfica em Machu Pichu.
Ele lidava com dificuldades no batente, queria férias. Olhava a cadeira vazia na sala e achou que ela não devia pensar mais nele.
Ela se casou. Ele redobrou as atenções com a mulher. E a vida continuou, como sempre continua.
Um ano depois, na coluna dele, um poema:

Quinta Estação



A sandália jogada num canto da sala
o cheiro do café, 4 gotas de adoçante
mãos folheando livros, folheando cenas
do cotidiano não esquecido
hoje outono amanhã inverno
as folhas não caíram
o frio não chegará
de repente
esquinas vazias, sinais
talvez
amanheça nova estação e
as gotas no café possam ser
apenas gotas
libertas do turbilhão de vontades.


Ele datou: “1º de abril, dia em que todas as palavras merecem o benefício da dúvida”.
Ela recortou o jornal com cuidado, como se as palavras pudessem fugir do papel a qualquer momento e guardou os versos na carteira.