Elo Primitivo

sexta-feira, abril 02, 2004

Airo Zamoner

Ele é um escritor consagrado. Generoso, divide seus conhecimentos com iniciantes. É autor de vários livros , entre eles “Dezoito Mulheres, dramas e amores” , que eu degustei vagarosamente na última semana. Criou a Editora Protexto e a Casa do escritor, em Curitiba.
Clicando nos links vocês terão acesso à biografia, aos textos, à editora, aos livros etc. Mas existe algo que não está lá. É um olhar poético, lírico de extrema sensibilidade perante a vida. É uma honra ter o seu nome registrado aqui. E, como aperitivo, para que se sintam tentados a ler o livro todo, o conto de abertura do livro:

CLAUDINE


Ela se destaca nos meus olhos. Saltita alegrias. Nos rodopios, o vestido de rendas e babados restaura harmonias antigas. A minúscula mãozinha agarra o pai carrancudo. Puxa-o na avidez de conhecer os detalhes do mundo. Aos gritinhos, arrasta-o, estimulando-o a ver. Ver e opinar. Dizer como é lindo, como é feio, engraçado, estranho, tudo que se oferece descompromissado aos seus olhinhos curiosos.
Observo e meu coração dói. Vontade de agarrar esse pai pelo colarinho. Sacudi-lo com violência pedagógica. Acordá-lo dos seus trinta, quarenta anos. Forçá-lo a sentir a felicidade que flui gratuita por seu braço indiferente. Gritar para que olhe, uma vez ao menos, para baixo. Fazê-lo ver que a vida berra na alegria voluntária da filha, pesquisadora do mundo.
Contenho-me e ele continua preso à mão que descobre, investiga, apalpa e sorri para o rosto cego. Indiferente, prefere manter-se mergulhado nos mesquinhos corredores de seus problemas. Nem um olhar solidário. Perdido, se mantém nos escaninhos abarrotados de lixo pantográfico, gradeando o mundo para ele travestido de inferno, para ela enfeitado de paraíso.
Ela não desiste. Puxa e o faz com a força do entusiasmo. O pai arqueia o corpo e quebra a indiferença. Por um lapso de tempo imaginei que algo trincaria naquele instante e um sorriso vazaria, senão da boca, ao menos dos olhos. Não! Ao contrário. Uma reprimenda bruta. Um puxão no braço franzino e o abuso de palavras duras.
A menina encolhe o corpo. Recolhe as luzes do rosto. A mão que sobra vai à face, na tentativa falha de enxugar lágrimas salgadas. O choro chega aos meus ouvidos e meu coração se estilhaça.
Ela, que vinha qual batedora, explorando caminhos, agora encurta o corpo. Fica para trás e é arrastada com pressa. Seus passos pequenos não vencem os do pai embrutecido. Tropeça e desaba. É erguida aos ares apenas pelo braço delicado. Seus pezinhos se arrastam e uma sandália escapa. Indefesa, larga o corpo indo ao chão. Último recurso contra a força da cegueira. Impedida pelos soluços, não articula uma só palavra. Aponta o dedinho minúsculo para o calçado fujão e novos impropérios invadem os seus ouvidos puros.
Impossível manter-me estático. Saio correndo da minha indiferença forçada. Chego ofegante. Junto a sandália cor-de-rosa e me agacho. Pego seu pezinho, limpo-o carinhoso e visto o calçado rebelde.
Lenço na mão, enxugo suas lágrimas abundantes. Digo palavras doces. Ela interrompe o choro. O pai emudece.
Falo da beleza do seu vestido de rendas e babados. Explode um sorriso que espanta a mágoa. Eu a ponho em pé e afago suas roupas. Trocamos um olhar profundo. Pergunto seu nome. Ela se atira em meus braços.
– Claudine!
Enlaça meu pescoço e os transeuntes param. O abraço é longo, carinhoso, delicioso.
O pai se desajeita. Ameaça um sorriso de ternura falsificada. Aborta-o. Constrange-se pela evidência. Recompõe-se movido por amarguras e despreparo. Ergue-a ao colo com violência e retoma a caminhada apressado.
Virada para trás, queixo apoiado no ombro do pai, ela vai sacolejando e me acena. Atira-me beijos imensos. Perde-se na multidão.