Elo Primitivo

domingo, abril 18, 2004

Mosaico Refletor

Abri os olhos, continuei dormindo. Às vezes, a alma acorda de ressaca sem que haja álcool na noite anterior.
O corpo acompanhou o ritmo mental, levantei em câmera lenta. Apenas um pensamento: preciso descansar. Descansar? Como se acabei de acordar? Em frente ao espelho automaticamente ajeitei o cabelo. Aproximei-me. Quase encostando o rosto no vidro refletor. Olhei no fundo da íris. Esse azul é um enigma, traços coloridos delineiam tramas sob as quais não tenho controle. Forças me movem do norte ao sul. Luzes captam energias vitais da natureza e de pessoas que se envolvem nesse emaranhado de vida.
Ainda sem lentes de contato percebo que acordei com a alma embaçada. Para os olhos, lentes divergentes resolvem o problema da miopia.
Existe algum tipo de lente capaz de consertar o foco da alma? Deslocar e emitir corretamente os sinais cerebrais conduzidos por vasos à retina emocional? Transluzir o cristalino subconsciente?
No silêncio, tento responder minhas inquietações. Uma palavra surge: amor. Outra em seguida: paixão.
Sentimentos que nos tiram de foco e aumentam a capacidade de zoom infinitamente. Basta a presença ser sentida, ainda que há quilômetros de distância, vou mais além; basta que compartilhe da sua vida em pensamento, para acontecer a refração. Reflexos involuntários dilatam e contraem pupilas. Fogos de artifício explodem dentro de hemoglobinas. Sinfonias são compostas em contrapontos respiratórios. Chuvas mágicas transpiram nas extremidades, escorrem por lábios e pernas, umedecem corações, lavam mágoas, desentranham brilhos e viços. Reflorescem sonhos, vidas, sonos, vontades e realidades.
Abro a torneira, o barulho me transporta para outros lugares: praias, cachoeiras. Enxergo agora de onde vem minha batalha, meu cansaço e a luta que travo todos os dias. Pressinto que é hora de arrumar a bagunça. Olho para a poltrona do meu quarto, ela reflete meu estado de espírito. A consciência da necessidade de uma estabilização é o primeiro passo para sair da obscuridade. Ligo o radio na MPB Fm, começa a tocar Paciência do Lenine, essas “coincidências” sempre acontecem nos momentos de encontro comigo mesma.
Abro a gaveta da mesa de cabeceira, vejo a foto de um sorriso iluminado pelo prazer de quem faz o que gosta na vida. Recobro o ânimo, sento na cama e começo vagarosamente a dobrar as roupas amontoadas na bergère, aliás, faz tempo que virou cabide.
Está na hora de trocá-la de lugar. Decisões importantes começam com pequenas mudanças.