Elo Primitivo

domingo, abril 25, 2004

Muito barulho por nada(?)

O Vander, editor do Jornal de crônicas me escreveu sobre a publicação do conto “Jardim encantado” em seu site. Admiro o trabalho que ele faz lá. Mas, dessa vez fiquei brava. Pela primeira vez uma especialista “mexeu” no meu texto. A Eneida reformulou frases, até aí tudo bem. Caso não fosse uma prosa poética... Gritei! O Vander voltou atrás e publicou a versão original. Só então li com calma as modificações. E algumas foram para melhor, a não ser pela última frase... deixo a questão com vocês_ se tiverem saco para ler as duas versões. A original está aqui e a da Eneida logo abaixo. E aí, qual das duas preferem?

Jardim encantado


A visita semanal de Gabriel virou rotina. Na primeira vez que ele veio, lemos o conto machadiano "A missa do galo" . Fiquei encantada! Ele lia alto e a entonação da sua voz provocava uma sensualidade, me deixando relaxada. Na semana seguinte, poemas de Olavo Bilac. Nunca mais fui a mesma depois de "Alvorada do Amor". Tudo parecia possível com um amor assim, que desafiava Deus, leis da natureza e do universo.Com seu jeito displicente, largava a mochila no chão e ia se recostando aonde desse. Esticava as longas pernas, tirava o tênis e ia desvendando as raridades literárias que trazia: Manoel de Barros, Baudelaire, Guimarães Rosa, Kafka. Vivia em função das duas horas mais saborosas da minha semana.As amigas perceberam algo diferente, jamais poderiam supor a revolução pela qual eu passava. Confessei às vitórias régias que me aconselharam a esquecê-lo; jamais daria certo, a diferença de idade era enorme. Entristeci-me. Então Bilac está enganado?Hoje, o orvalho umedeceu a casca da primeira fruta madura. Raios de sol penetraram através das folhas, tornando as gotas iridescentes. Ele se aproximou hipnotizado; tocou em mim, provou a gota, sentiu o cheiro, a textura da casca, o brilho cintilante do sol sobre a fruta; o suor das mãos misturado ao frescor do orvalho, quentura da saliva, maciez da língua. Eu esperava em transe pela mordida.Ele olhou para os lados, como se aguardasse por um terremoto. Senti a atração mútua, percebi o medo da fruta desconhecida. Tirou da mochila uma maçã embrulhada em papel alumínio, parecia não saber o que fazer. Apertava- a com força, quase encravando os dedos, ao mesmo tempo em que me olhava, confuso.Originalmente, não produzo frutos. Recolhi pólen das flores, beijos de borboletas, sementes dos bicos de colibris. Inventei uma espécie rara, especialmente para ele provar. Uma fruta macia, suas digitais no contorno, desejosa da temperatura da língua no cio que se afoga na saliva. Um desejo de abocanhar, furtando-se à razão.Em câmera lenta me encarou. Um pingo escorreu em seu ombro, pensou ser mais uma gota de orvalho. Não. Árvores também choram. Ele se afastou sem olhar para trás, a maçã caiu da sua mão, rolando até se estagnar no meio-fio.Convoquei o tufão para desabafar. Trovão esbravejou. Gargalho da fúria, nada mais me assusta. Sou fruta plena, árvore que se reinventa. Se ele tivesse tido coragem de provar, talvez enxergasse que (o que tinha a perder) não chegaria aos pés do poderia ganhar. O sabor do sol, o espaço azul pra flanar, flores pra se acobertar.Ele nunca percebeu, mas quando os portões do Jardim Botânico se abriam, secretamente eu desabrochava uma simples flor branca, reluzindo o arco-íris.

Sabine Marins (revisão:Eneida)