Elo Primitivo

sábado, junho 12, 2004

Livro, fiel namorado *

"Quando penso em todos os livros que ainda posso ler, tenho a certeza de ainda ser feliz." Jules Renard

"É o que você lê quando não tem que fazê-lo que determinará o que você será quando não puder evitar." Oscar Wilde

"Escondidas no silêncio da biblioteca, mascarados pela escura monotonia das capas, todas as palavras estavam lá, esperando que eu as decifrasse. Eu sonhava me enfurnar naqueles corredores poeirentos, e nunca mais voltar." Simone de Beauvoir

"Um amigo, com quem percorria sebos e livrarias, costumava examinar os livros nas prateleiras, percorrendo-os simultaneamente com os olhos e o dedo indicador, que passeava pelas lombadas perfiladas, acariciando-as como se fossem o corpo de virtuais namoradas, objetos de desejo, amor. De repente, parava. Estava diante da possibilidade de um encontro que poderia mudar sua vida para sempre. Retirava então o livro da estante, com reverência, e o abria aleatoriamente, deixando as páginas deslizarem por seus dedos, num ruído semelhante ao do jogador de pôquer ao embaralhar as cartas. Depois, fechando os olhos, cheirava o livro, prazerosamente. Diante do meu espanto, esclarecia que o cheiro do papel é um bom indicador da qualidade do livro, quase que o cheiro da pele. Por fim, passada essa fase, digamos, de preliminares amorosas, ele se concentrava na leitura.

Meu amigo é o que se costuma chamar de devorador de livros. A expressão é rica em imagens. Pode associar o prazer da leitura ao de um amante pervertido, que sente prazer com o manuseio das folhas de papel e a viagem pelas letras e seu significado, ao de um gourmet que degusta requintes gastronômicos ou mesmo ao de um voraz glutão diante de um prato suculento. Talvez, ainda, um antropófago rendendo suas homenagens ao inimigo vencido, e comendo-o com deleite. Não há exagero nessas metáforas. Todas elas são pertinentes para se tentar descrever a paixão pelos livros dos que são ávidos não só pelas histórias, enredos e idéias, mas, fisicamente, pelo objeto em si. Para essas pessoas, o livro é muito mais do que uma opção de lazer. Está além da razão ou da idéia positivista de que se limita à função de esclarecer, entreter e iluminar. O que move o apaixonado ou devorador de sopa de letrinhas é algo que opera em outra província da alma humana, outra região do psiquismo."
* Paulo Thiago de Mello, Prosa & Verso, O Globo