Elo Primitivo

sexta-feira, outubro 15, 2004

As Brasas

Sándor Márai
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Mas Konrad tinha um refúgio para onde o amigo não podia segui-lo: a música. Era como se dispusesse de um esconderijo secreto em que a mão do mundo não pudesse alcançá-lo... Sentia a música com todo o seu corpo, nela bebia como um sedento, escutava-a como um prisioneiro que apura o ouvido ao som de passos que se aproximam e que talvez lhe tragam a notícia de sua libertação ...a música dissolvia tudo ao seu redor, abolindo por instantes as leis daquele pacto artificial...
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Da música parecia se desprender uma força mágica capaz de levantar os móveis e inflar as pesadas cortinas de seda das janelas. Era como se todas as coisas velhas e mofadas, enterradas há tempos nos corações humanos, recomeçassem a viver, como se no coração de cada criatura se aninhasse um ritmo mortal que, em dado momento da vida, poderia começar a pulsar com violência implacável. Os pacientes ouvintes compreenderam que a música representava um perigo. Mas a mãe e Konrad, sentados ao piano, já não ligavam para esse perigo. A Fantaisie polinaise era só um pretexto para a explosão de forças que se agitam e fazem eclodir tudo o que costuma ser cuidadosamente camuflado pela ordem estabelecida...
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Konrad temia a música, com a qual cultivava uma relação secreta, que envolvia não só seu espírito mas também seu corpo: como se o sentido mas profundo da música consistisse numa espécie de imposição fatal que pudesse desviá-lo de sua trajetória e quebrar alguma coisa dentro de si...
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Ed. Companhia das letras, pgs 41 a 46