Elo Primitivo

sexta-feira, março 04, 2005

As Flores do Mal



As descrições são raras e sempre significativas. E tudo é encanto, música, sensualidade abstrata e poderosa... Luxo, forma e volúpia. Nos melhores versos de Baudelaire há uma combinação de carne e de espírito, uma mistura de solenidade, de calor e de amargura, de eternidade e de intimidade, uma aliança raríssima da vontade com a harmonia que os distinguem nitidamente dos versos românticos, como os distinguem nitidamente dos versos parnasianos(...) Essas palavras extraordinárias são conhecidas e reconhecidas através do ritmo e das harmonias que as sustentam e que devem estar tão íntima e tão misteriosamente ligados à sua produção que o som e o sentido não possam mais separar-se, correspondendo-se infinitamente na memória.
.
VALÉRY Paul, Variedades, Situação de Baudelaire, trad. Maiza Martins de Siqueira, 1991-1999: Iluminuras.


LXXXVI - PAISAGEM

Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me junto ao céu, à moda dos astrólogos,
E, vizinho do sino, escutar cismarento,
Os seus hinos marciais, levados pelo vento.
As mãos postas no queixo, eu do alto da mansarda,
Hei de ver a oficina a cantar na hora parda;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
Grandes céus a fazer sonhar a eternidade.

É sempre doce ver que à tarde a bruma vela
A estrela pelo azul e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão irem ao firmamento,
Como a Lua, verter seu frouxo encantamento.
Eu hei de ver a primavera, o outono e o estio;
E quando o inverno vier, monótono em seu frio,
Por tudo fecharei cortinas e portões
Para construir na noite as feéricas mansões.

Sonharei com o poente azul e com seus astros,
Repuxos no jardim chorando entre alabastros,
Beijos como canções desde a manhã à tarde,
Tudo o que de infantil o Idílio ainda guarde.
O Alvoroço lá fora em tempestade cresça
Mas eu nunca erguerei da carteira a cabeça;
Mergulhado serei nesta sensualidade
Do mês de abril chamar só com minha vontade,
De um sol todo extrair de minha alma, que espera
Mudar meu peito ardente em tépida atmosfera.

Charles Baudelaire

Tradução: Ivan Junqueira e Jamil Hadaad