Elo Primitivo

terça-feira, março 15, 2005

Vanguarda viva

Paulo Roberto Pires - no mínimo
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15.03.2005
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“Sir, please!” Pela milésima vez, sem esconder a impaciência, o negro baixinho, que manca da perna direita, tem que sair de seu lugar e impedir, com educação, que alguém tire uma reta e acabe dando um encontrão nas oito pilhas de feltro que, encimadas por placas de bronze, ficam pouco depois da entrada de um dos salões da Tate Modern. Em exposição de Joseph Beuys, o histórico artista performático, funcionário de museu sai daquela apatia e tédio característicos: tem que dar duro para que o distinto público, mesmo modernoso como o londrino, entenda seu lugar e o da obra. Essa aí, aliás, chama-se “Fonds VII/2” e ocupa a primeira das dez salas da mostra “Joseph Beuys – Ações, vitrines, ambientes”, uma retrospectiva que ajuda a entender os limites entre conceito e picaretagem na arte contemporânea.Não que Beuys fosse bom de impor limites. Muito pelo contrário. Dedicou grande parte dos seus 65 anos a confundir as noções estabelecidas de arte. Desde que Marcel Duchamp levou às galerias de arte um mictório e batizou-o “Fonte”, um artista não é tão radicalmente crítico quanto este alemão que serviu como aviador ao Reich, estudou e ensinou escultura e destacou-se dos companheiros de vanguarda do grupo Fluxus por sua radicalidade e consistência. É venerado como um dos santos-padroeiros do vale-tudo das instalações e performances, mas basta ver uma de suas obras – incômodas, irônicas e às vezes até mesmo deprimentes – para entender o lugar que ocupa na História. Feltro, metal e gordura animal são alguns dos elementos onipresentes em seus trabalhos. Diz a lenda que o avião pilotado por Beuys caiu na Criméia durante a Segunda Guerra Mundial. Na versão que ele gostava de contar, os camponeses que o socorreram envolveram seu corpo com gordura e cobertores de feltro para poupá-lo do frio, o que explicaria a obsessão de obras como “A matilha”, de 1969. Trata-se de uma Kombi caindo aos pedaços “puxada” por uma matilha de pequenos trenós, cada qual equipado com um cobertor, um pedaço de gordura e uma lanterna. É uma visão tristíssima, descrita por ele como um “objeto de emergência”: “Em um estado de emergência a Kombi não serve para quase nada e, para que se sobreviva, é preciso apelar para meios mais simples e primitivos”.O capitalismo é, para Beuys, um mal a ser exorcizado, de todas as formas. Inclusive fazendo a crítica radical do socialismo, que sua geração vivenciou com toda a força de suas contradições. “Valores econômicos”, de 1980, é neste sentido genial: no centro da sala, apodrecem (literalmente) em prateleiras de ferro produtos essenciais comprados na antiga Alemanha Oriental. Em cada museu onde é montada, a instalação é cercada por quadros produzidos entre 1818 e 1883, anos de nascimento e morte de Marx. É preciso que as obras tenham molduras douradas, “burguesas”. “Minha escultura não está fixa nem terminada. O processo continua: reações químicas, fermentações, mudanças de cor, decadência, ressecamento. Tudo está em estado de mudança”, acreditava ele, fazendo das mudanças físicas uma representação da contínua mudança ideológica que o mundo vem passando desde então.Não é totalmente estranho que, numa exposição desta natureza, uma das obras mais impactantes esteja ausente. Trata-se de um filme de 37 minutos que registra a mais célebre e contundente performance de Beuys, “I like America and America likes me”. Em maio de 1974, Beuys chegou a Nova York e, sem botar os pés em solo americano, embrulhado em cobertores de feltro, foi levado numa ambulância até a galeria onde se trancou por três dias com um coiote, animal mítico para os índios americanos – no percurso entre o carro e a galeria, foi usada uma cadeira de rodas. A cada dia, eram introduzidos na sala 50 exemplares do “Wall Street Journal” para que o coiote pudesse registrar, com urina, o passar do tempo. Enrolado nos cobertores, usando uma bengala que sugere um fantasmagórico pastor de animais, Beuys e o coiote estabeleceram todo tipo de relação possível e imaginável entre dois seres vivos (entre dois países?): medo, raiva, camaradagem, afeto. Ao final da performance, novamente envolvido em cobertores e sem botar os pés em solo americano, Beuys é embarcado de volta.“Queria me isolar, me ilhar, não ver nada da América que não fosse o coiote”, explicou ele, que com a performance criticava duramente as ações dos EUA no Vietnam. As imagens desta performance são impressionantes e mostram o nível de complexidade a que Beuys podia chegar. Hoje, 31 anos depois e com os EUA ainda ignorando solenemente as mais elementares convenções do Direito Internacional, a “ação” deixa muito artista bom envergonhado e faz Michel Moore e Noam Chomsky parecerem colegiais que fazem direitinho sua lição de casa.Há ainda vitrines com materiais utilizados em performances diversas, quadros-negros preservados das famosas conferências dadas pelo artista e a incômoda “Mostre sua ferida”, instalação de 1974 feita de duplas de objetos: instrumentos agrícolas, quadros-negros e mesas usadas na dissecação de cadáveres, sob as quais jazem enormes potes com gordura derretida. Tudo aludindo às perversas relações do Homem com a História e, sobretudo, a responsabilidade da Alemanha no Holocausto. Se nada disso passa pela cabeça do visitante literalmente, fica uma sensação terrível de destruição e melancolia – ainda maior quando se é informado que, originalmente, a instalação foi pensada para uma abandonada passagem subterrânea de pedestres em Munique. Não há na Tate Modern, a imponente fábrica transformada em tempo da arte contemporânea, as filas que se formam na National Gallery, onde agora são exibidos 16 quadros raros de Caravaggio. Na Tate Britain, a atração, também com filas serpenteantes, é a mostra Whistler/Monet/Turner. Se dessas duas o cidadão sai maravilhado, da restrospectiva Beuys só se pode esperar incômodo. Mesmo que, ignorando os eloqüentes apelos daqueles ambientes, só se consiga fazer a velha e inócua pergunta: “Mas isso é arte?” Mas se for assim, já está muito bom.