Elo Primitivo

quarta-feira, outubro 29, 2008

Aborto




Quantas mentiras naquelas verdades?

..........Ele fechou a porta e foram embora, como se fossem um casal ou como o casal que foram por um dia, uma tarde, um universo particular.
..........Desceram juntos no elevador pequeno, sufocante com o constrangimento disfarçado de sensatez. Alguma coisa na plácida civilidade soava falso.
..........Ela sentiu algo escorrer lentamente entre as pernas no momento exato em que ele disparou a palavra fatal. O útero expulsando as camadas acumuladas de nós. Pensou apenas no sofá, sujou? Tentativa inútil de dispersão. Pediu licença e se levantou. Olhou apreensiva, de relance para o xale bege. Não manchou o sofá. O sofá, não.
..........No banheiro resolveu a questão. Guardou o papel branco tingido de vermelho na bolsa pra não deixar pistas. As toalhas de banho penduradas na parede, cuidadosamente dobradas, tinham estrelas bordadas em alto relevo _ iguais às suas. As dele, azuis, as dela, amarelas; mas isso já não importava mais. Exceto a idéia de que quem usaria as azuis não seria ela.
..........Deixou a luz do banheiro acesa num ato inconsciente do qual só se tocou segundos depois. Ele, que esperava em pé com a chave na mão, andou em sua direção, entrou no banheiro com olhar 180 graus conferência e apagou a luz. Havia uma suspeita no ar. Dela? Dele?

..........No portão, um abraço. Melhor seria o aperto de mão. Mão? Não. Melhor aceno de olhos. Não. Melhor, não.
..........Enquanto ela caminhava até o carro, agora com liberdade de sentir, o corpo – sempre ele – exigia sua própria linguagem. E sem que ela pensasse, assim que entrou no carro, seus dedos digitaram números no celular e do outro lado truncado da linha, ele. Disse frases soltas que a conexão ruim se encarregou de não comunicar. Frases que não chegaram ao destinatário, mas precisavam ser ditas por ele – o corpo. Não por ela, por ela - nunca.

..........................O corpo tem suas verdades.

..........E foi justamente o corpo que quase se denunciou quando viu aquela fotografia momentos antes. Ele abriu a caixa com fotos da sua história, família, amigos e o portão azul. Nessa hora, ela piscou os olhos uma fração de segundo mais lento. Alguma coisa naquela imagem a fez entender, pontuou o fim. O portão fechado, de ferro e a parede amarela desbotada ao fundo numa combinação perfeita de tons e profundidade estavam em linhas paralelas. No espaço vazio _ vão, sem entrelaçamentos, sem olhos fechados em eternidades, sem tremores de terra nem descobertas. O sangue jorrou num fluxo intenso, de uma vez, ainda bem que a saia era preta.


..........Algum tempo se passou – ele sempre passa. E, numa dessas tardes qualquer, ela passava a terceira marcha e seguia, dobrando na primeira à direita. Enquanto isso, ele passava pelo túnel pensando em como era boa a sensação do escuro. Tirou os óculos pra enxergar melhor e viu faróis iluminando a faixa branca do acostamento.
..........Luzes vermelhas refletiam, fosforescentes, no asfalto molhado. A beleza tem tantas formas quanto às intensidades dos sentidos. De repente, num fragmento cotidiano, sentiu um arrepio. Diálogo mudo compartilhando leituras de mundo. Piscou os olhos uma fração de segundo mais lento, em sorriso, ganho na sorte do encontro sinfonia.
..........Gostava das cores difusas de lanternas, pisca - alerta e setas se movimentando, trânsito lento em dias de chuva. No lado de dentro vidros respingados, pára-brisas dizendo não em diferentes ritmos, sinais verdes falando sim, músicas tocando talvez. Todos juntos, brincando de roda, cata-ventos de alegria em pleno mês de outubro.


.......................Quantas verdades naquelas mentiras?


Fotos: Sabine Marins