Elo Primitivo

sexta-feira, abril 30, 2004

A vida continua e é maravilhosa

Ana abriu o diário. Sentada na pedra da praia de Itacoatiara, puxou a caneta que prendia seu cabelo e escreveu:

Observo a página em branco. Momentos de plenitude são assim. Tudo e nada. Uma página limpa, com possibilidades ilimitadas.
Ainda tento entender o sentido de alguns encontros nesse complexo universo, repleto de emoções e sensações irracionais.
Não estou a fim de escrever. Quero paz! Mas, a urgência é maior.
Acordo e ouço todos os dias o Cd do Zeca Baleiro enquanto tomo banho. Minha rotina continua a mesma, apesar de algumas ausências. Sinto saudades, realmente sinto, mas ultrapasso a dor. Tento lidar com a dúvida sobre o que representei na sua vida. É cruel o pensamento de que posso ter sido apenas uma brisa, mas nunca saberei ao certo. Talvez meu crescimento esteja justamente em sentir a ambigüidade. É contraditório o que ouvi de sua boca e a energia que experimentei do seu olhar. Porém, a incidência da voz retratando a vontade limitada é verídica demais para que possa suspeitar.
Um salva-vidas se aproxima, devo parecer desprotegida, ele diz: “é a melhor coisa para refrescar a cabeça”. Sorrio, internamente agradeço. A palavra refrescar surtiu efeito imediato. Preferi não responder. Estou com medo das palavras. Elas têm força própria e dificilmente retratam o que sentimos. Algumas ferem, despidas de intenções.
Sinto o vento. Ele me embala com uma intimidade natural. Sei como me consolar. A natureza segura minhas mãos. Absorvo a beleza do momento: montanhas, praia, enigmas na linha do horizonte, sua imagem. Uma lágrima expressa minha emoção. É o suficiente.
Sobrevivo a perdas inevitáveis e a encontros mágicos inesperados. Sei que sentir falta é sentir presença, despeço-me aos poucos, tento permanecer com os ganhos e dizer adeus ao apego.
Tenho a mim e, curiosamente, isso me basta. Sigo meu caminho. A estrada é repleta de curvas. Descobri que não importa o resultado, ser feliz durante a jornada é a grande sacada.

***

Ana fechou seu diário ao meio-dia de uma terça-feira de abril. Com as sandálias na mão, caminhou até o carro. Desceu a barra da calça jeans, voltou ao escritório.
Em frente à tela em branco do computador, sem perceber, deu início ao seu novo romance. Olhou pela janela e sorriu, foi arrebatada pelo projeto.
Assim, de repente, como prenúncio de novos rumos, novos ventos.

quarta-feira, abril 28, 2004

Fragmento do conto Encontros transparentes

Sou um dicionário grego, belo em símbolos, indecifrável. Latejo idéias, expurgo sentimentos, fotografo imagens inexistentes. E respiro, por incrível que pareça. Teses não me interessam. O que inspira urgência vale a pena, o resto é acomodação.
Nada é mais verdadeiro do que a transparência desses vidros. Enxergo através, sem distorções, sem mal-entendidos. Verde é verde e só. O barco navega em linha reta, sem metafísicas. A lua ainda me emociona. O avião sobe aos céus, quantas pessoas ele carrega? Quantos sonhos e conflitos ele leva? Meu pensamento voa a cada instante, flutua no espaço, naquele espaço vazio que algumas pessoas deixaram.
A nuvem que vejo agora é ilusão. Tantos artistas se achando gênios.
Minhas verdades mudam a cada minuto, a cada tombo. Percebo agora o que me era velado ontem, mas que amanhã poderá ser encoberto por novas revelações. A pele desvenda verdades absolutas, ainda que frugais e desligadas de palavras gastas e intensas como o amor. O amor, não sou contra, mas nem tudo que pulsa é compromisso, às vezes, é melhor. O toque tatua memória na pele, arde em vontades, dilata desejos…

terça-feira, abril 27, 2004

Borboleta de Rimbaud


É na força que me reconheço. Estranho o instante em que vejo; o que me falta traduz-se em desejo, o que me move é apenas ficção. Construo personagens ambíguos, simulacros da imaginação. Erguem-se ao perder, decifram equívocos no deslize de ser. Desnudo camadas conscientes, inauguro utopias coerentes. É nesse ser selvagem que encontro a metamorfose das patas em escamas transparentes.

segunda-feira, abril 26, 2004

Saudade/Lembrança

"Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue".
"Lembrança é quando, mesmo sem autorização, o seu pensamento reapresenta um capítulo." "Mania de Explicação" da Adriana Falcão, ilustrações de Mariana Massorani.
Esse livro é lindo! Comprei na última feira infanto-juvenil no MAM.
Lá, enquanto o Gabriel lanchava, li "Bichos que existem e bichos que não existem"* para ele. Quando terminei, o Gabi disse: "mãe, tô arrepiado." " Tá com frio ?" " Não, é que esse livro é muito legal!"
Havíamos acabado de assistir a palestra com o autor. Logo depois, conversamos com ele num dos estandes. Pedi ao Gabi para falar sobre a "experiência" dele com o livro. Autorização negada. Fiquei calada, morrendo de vontade. Puxa vida! Tem retorno melhor para um escritor?
Até hoje esse é o livro favorito do Gabriel. Ontem, relendo-o pela milésima vez, ele pediu: " Vamos lá na feira dos livros?" " Pra quê?" " Agora você já pode contar..."
* Arthur Nestrovski , ilustrações: Maria Eugênia, editora: Cosac & Naify, (vencedor do jabuti).

Por que escrever?

"Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria ainda se me dissessem, hoje, que amanhã uma catástrofe cósmica destruirá o universo, de modo que ninguém poderá ler aquilo que hoje escrevo?
Em primeira instância a resposta é não. Por que escrever se ninguém vai poder ler? Em segunda instância, a resposta é sim, mas somente porque nutro a desesperada esperança de que, na catástrofe das galáxias, alguma estrela possa sobreviver e amanhã alguém possa decifrar os meus signos. Então escrever, mesmo na véspera do Apocalipse, ainda teria um sentido."
(Sobre a Literatura, Umberto Eco, Editora Record pág.305)

domingo, abril 25, 2004

Muito barulho por nada(?)

O Vander, editor do Jornal de crônicas me escreveu sobre a publicação do conto “Jardim encantado” em seu site. Admiro o trabalho que ele faz lá. Mas, dessa vez fiquei brava. Pela primeira vez uma especialista “mexeu” no meu texto. A Eneida reformulou frases, até aí tudo bem. Caso não fosse uma prosa poética... Gritei! O Vander voltou atrás e publicou a versão original. Só então li com calma as modificações. E algumas foram para melhor, a não ser pela última frase... deixo a questão com vocês_ se tiverem saco para ler as duas versões. A original está aqui e a da Eneida logo abaixo. E aí, qual das duas preferem?

Jardim encantado


A visita semanal de Gabriel virou rotina. Na primeira vez que ele veio, lemos o conto machadiano "A missa do galo" . Fiquei encantada! Ele lia alto e a entonação da sua voz provocava uma sensualidade, me deixando relaxada. Na semana seguinte, poemas de Olavo Bilac. Nunca mais fui a mesma depois de "Alvorada do Amor". Tudo parecia possível com um amor assim, que desafiava Deus, leis da natureza e do universo.Com seu jeito displicente, largava a mochila no chão e ia se recostando aonde desse. Esticava as longas pernas, tirava o tênis e ia desvendando as raridades literárias que trazia: Manoel de Barros, Baudelaire, Guimarães Rosa, Kafka. Vivia em função das duas horas mais saborosas da minha semana.As amigas perceberam algo diferente, jamais poderiam supor a revolução pela qual eu passava. Confessei às vitórias régias que me aconselharam a esquecê-lo; jamais daria certo, a diferença de idade era enorme. Entristeci-me. Então Bilac está enganado?Hoje, o orvalho umedeceu a casca da primeira fruta madura. Raios de sol penetraram através das folhas, tornando as gotas iridescentes. Ele se aproximou hipnotizado; tocou em mim, provou a gota, sentiu o cheiro, a textura da casca, o brilho cintilante do sol sobre a fruta; o suor das mãos misturado ao frescor do orvalho, quentura da saliva, maciez da língua. Eu esperava em transe pela mordida.Ele olhou para os lados, como se aguardasse por um terremoto. Senti a atração mútua, percebi o medo da fruta desconhecida. Tirou da mochila uma maçã embrulhada em papel alumínio, parecia não saber o que fazer. Apertava- a com força, quase encravando os dedos, ao mesmo tempo em que me olhava, confuso.Originalmente, não produzo frutos. Recolhi pólen das flores, beijos de borboletas, sementes dos bicos de colibris. Inventei uma espécie rara, especialmente para ele provar. Uma fruta macia, suas digitais no contorno, desejosa da temperatura da língua no cio que se afoga na saliva. Um desejo de abocanhar, furtando-se à razão.Em câmera lenta me encarou. Um pingo escorreu em seu ombro, pensou ser mais uma gota de orvalho. Não. Árvores também choram. Ele se afastou sem olhar para trás, a maçã caiu da sua mão, rolando até se estagnar no meio-fio.Convoquei o tufão para desabafar. Trovão esbravejou. Gargalho da fúria, nada mais me assusta. Sou fruta plena, árvore que se reinventa. Se ele tivesse tido coragem de provar, talvez enxergasse que (o que tinha a perder) não chegaria aos pés do poderia ganhar. O sabor do sol, o espaço azul pra flanar, flores pra se acobertar.Ele nunca percebeu, mas quando os portões do Jardim Botânico se abriam, secretamente eu desabrochava uma simples flor branca, reluzindo o arco-íris.

Sabine Marins (revisão:Eneida)

sábado, abril 24, 2004

Nave da Palavra

O conto "Primeiro de abril" embarcou aqui.

sexta-feira, abril 23, 2004

O Livro sobre Nada

"A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos."

"Não preciso do fim para chegar."

"Do lugar onde estou já fui embora. "

Manoel de Barros

quinta-feira, abril 22, 2004

Riscos

Goethe


"Do que adianta você ter esta alma colada aos ossos dessa carne errada ?
Sem o risco, a vida não vale a pena.
Se você não quiser arriscar, não comece.
Isso quer dizer: se você arriscar, perder namorada, esposa, filhos, emprego, a cabeça, e até a alma.
Mas, é sempre melhor isso do que olhar pra todas essas outras pessoas que nunca acertam porque nunca se propõe ao risco. "


Johann Wolfgang Von Goethe (1749 - 1832), autor, entre outros, de Fausto, Afinidades Eletivas e Ifigênia.

Um pouco mais sobre a Bienal 2003/Rio

“Os seres humanos abrigam em maiores ou menores medidas todos os sentimentos. Qualquer um pode se tornar qualquer coisa. Meu trabalho flui muitas vezes até contra minha vontade. Eu visto a roupa da personagem imediatamente. As personagens é que comandam, eu não controlo absolutamente nada na escrita” ( João Ubaldo Ribeiro)

“Só consigo escrever quando tenho o começo e o fim. A grande ponte entre eles é que é o mistério. Sou arquiteto e tento projetar cada capítulo, não consigo. O inesperado faz parte da escrita, é o que norteia a escrita, é o próprio fogo da criação. Quando eu começo a escrever não consigo mais parar. O processo você não controla. Há um momento de tensão entre o que você escreve e o que você projeta, são percursos sinuosos. Nós somos levados pelo imprevisível, pelo inconsciente.” (Milton Hatoum)

“Narrativa na primeira, na terceira pessoa, tanto faz. O importante dessa escolha é que aos poucos o leitor se sinta capacitado a duvidar do que está sendo escrito ali. A linguagem literária é a nossa experiência em forma de ficção.” ( Rubens Figueiredo)

quarta-feira, abril 21, 2004

Bienal 2003/Rio.

Frases que ficaram guardadas na memória:

“Como cientista eu prefiro não saber, isso é fundamental, prefiro morrer na ignorância do que parar de evoluir. Somos poeiras de estrelas. O universo está em constante transformação.” Marcelo Gleiser (astrofísico)

Pergunta : A imaginação é melhor do que a realidade?

“ Nós somos a invenção de nós mesmos, somos seres culturais. A realidade é barra pesada e tem limites. O copo cai e quebra, você não pode voar. O artista faz a maravilha, toda arte faz maravilha porque quer transcender a realidade.
Eu vivo de esperança! Não vivo de ilusões.” ( Ferreira Gullar)


“ No século passado a culpa era trair. Hoje a culpa é comer sobremesa”
“ Nossos corpos são vibráteis, há uma exigência de fluxos acelerados. Solicitação nervosa intensa. Há imagens no nível subliminar. Você não percebe o que percebeu.”
“A beleza é aquilo que desarma o superego e permite vazar o desejo, a perfeição é aquilo que desmobiliza o desejo.”
"Estamos nos tornando racionais como uma empresa. Precisamos de um upgrade para acompanharmos a rapidez do mundo atual, a lógica empresarial de nós mesmos.” (Maria Cristina Kehl)

“A depressão freudiana advinha da culpa moral. A depressão atual vem do vazio. De onde vem o vazio? É um vazio de sentido, quanto mais a sociedade nos convoca para fora, maior o esvaziamento objetivo. Somos sujeitos de conflito, quando encurtamos nossas angústias com drogas vem a sensação de vazio.” (Joel Birman)

segunda-feira, abril 19, 2004

Presente

( A Ferreira Gullar)


Sonhei com você Gullar
eu sorvia cada palavra
dita com a mesma poesia
de tantas escritas


Queria lhe falar do sentir:
dos processos inflamados,
salmouras e bandagens
que suscitou em mim


Palavra alguma murmurei
coisa louca essa tal de literatura.
Acordei cantando


Surpresas a vida
dá e desdobra.

domingo, abril 18, 2004

Mosaico Refletor

Abri os olhos, continuei dormindo. Às vezes, a alma acorda de ressaca sem que haja álcool na noite anterior.
O corpo acompanhou o ritmo mental, levantei em câmera lenta. Apenas um pensamento: preciso descansar. Descansar? Como se acabei de acordar? Em frente ao espelho automaticamente ajeitei o cabelo. Aproximei-me. Quase encostando o rosto no vidro refletor. Olhei no fundo da íris. Esse azul é um enigma, traços coloridos delineiam tramas sob as quais não tenho controle. Forças me movem do norte ao sul. Luzes captam energias vitais da natureza e de pessoas que se envolvem nesse emaranhado de vida.
Ainda sem lentes de contato percebo que acordei com a alma embaçada. Para os olhos, lentes divergentes resolvem o problema da miopia.
Existe algum tipo de lente capaz de consertar o foco da alma? Deslocar e emitir corretamente os sinais cerebrais conduzidos por vasos à retina emocional? Transluzir o cristalino subconsciente?
No silêncio, tento responder minhas inquietações. Uma palavra surge: amor. Outra em seguida: paixão.
Sentimentos que nos tiram de foco e aumentam a capacidade de zoom infinitamente. Basta a presença ser sentida, ainda que há quilômetros de distância, vou mais além; basta que compartilhe da sua vida em pensamento, para acontecer a refração. Reflexos involuntários dilatam e contraem pupilas. Fogos de artifício explodem dentro de hemoglobinas. Sinfonias são compostas em contrapontos respiratórios. Chuvas mágicas transpiram nas extremidades, escorrem por lábios e pernas, umedecem corações, lavam mágoas, desentranham brilhos e viços. Reflorescem sonhos, vidas, sonos, vontades e realidades.
Abro a torneira, o barulho me transporta para outros lugares: praias, cachoeiras. Enxergo agora de onde vem minha batalha, meu cansaço e a luta que travo todos os dias. Pressinto que é hora de arrumar a bagunça. Olho para a poltrona do meu quarto, ela reflete meu estado de espírito. A consciência da necessidade de uma estabilização é o primeiro passo para sair da obscuridade. Ligo o radio na MPB Fm, começa a tocar Paciência do Lenine, essas “coincidências” sempre acontecem nos momentos de encontro comigo mesma.
Abro a gaveta da mesa de cabeceira, vejo a foto de um sorriso iluminado pelo prazer de quem faz o que gosta na vida. Recobro o ânimo, sento na cama e começo vagarosamente a dobrar as roupas amontoadas na bergère, aliás, faz tempo que virou cabide.
Está na hora de trocá-la de lugar. Decisões importantes começam com pequenas mudanças.

sexta-feira, abril 16, 2004

Pensamentos ocultos

– Onde fica a Hemeroteca?
– À esquerda, no fim do corredor. _ respondeu Cecília.
– Obrigado.
“Engraçado esse cara olhando pela janela. Será que houve um acidente na rua? Ah! Então foi isso? Hum, estou com uns pensamentos... vou voltar pro balcão senão começam as fofocas. Cara interessante! O que faria se me visse nua no reflexo da janela? Meu contorno delineado pelos raios do arco-íris. Caramba!, posso sentir ele tocando em minha pele como se dedilhasse uma canção.”
“Não tinha notado essa mulher. Qual o nome no cracha? Ce-ci, Cecília. Que segredos esconde por trás da roupa tão comportada? Um decote combina mais com você."
“Foi embora, droga! Nem assinou o livro de presença. Ainda tenho que pegar a revista pra guardar. Ih, esqueceu alguma coisa. Um desenho. Não acredito! Ele me pintou, percebeu tudo! Assinou, Bernardo. Esse número, claro, é o telefone. E agora, o que fazer?”

quinta-feira, abril 15, 2004

Café Odeon

O sino toca cinco badaladas. Carros aceleram. O guarda de trânsito apita intermitente. Meu mundo zuni. Sento. Mesa redonda de mármore branco. No cardápio: sanduíches com nomes de filmes. Fico na dúvida entre Lavoura Arcaica e Madame Satã. Escolho Pequeno dicionário amoroso. Para beber: água.
Já me embriaguei por gerações. Conflitos persistem à ressaca.
Boca seca, olhos úmidos e a certeza de que vivo em escalas no meu próprio mundo.

quarta-feira, abril 14, 2004

Ping-pong

- Tá a fim?
- De quê?
- Você sabe...
- Sei nada, fala.
- Precisa? Olha pra mim.
- Tô olhando e daí?
- Vê o que estou vestindo.
- Já vi, não tô a fim.
- Dor de cabeça de novo?
- Me deixa quieta.
- Ah, vem...
- Não ando com ânimo pra essas coisas.
- É só começar, o corpo esquenta.
- Só pensa nisso!
- E você vive com a cara enfiada nos livros. Vai virar traça, hein!
- Quisera eu, papel não engorda.
- Então, quer coisa melhor para emagrecer?
- Não sei o que tá acontecendo comigo, mas não quero forçar, entende?
- Abre o olho, se toca com o que está fazendo.
- Ameaça?
- É ameaça sim. Depois vai ficar deprimida e eu é que vou ter que agüentar.
- Não tem que agüentar nada.
- Desculpa. Só tô tentando te convencer. Tira essa roupa, toma um banho e se anima. Eu espero.
- Desiste. Não depende de mim pra nada não. Se vira.
- Estou com a consciência tranqüila, Pati, tentei. Depois não reclama quando a calça jeans não fechar.
- Você é minha irmã, não é babá, viu?
- Ih, está com a macaca hoje.
- Vai Claudia, vai logo pra essa Academia. E vê se pára de encher o saco!



segunda-feira, abril 12, 2004

Blogautores

A décima nona edição do Blogautores está no ar. A editora é a Beltrana. Fui convidada a participar com o conto "Encontros Transparentes", num desafio de cores. Valeu amiga! Adorei a experiência!

domingo, abril 11, 2004

Fred Girauta

Ele faz poesia em movimento e poemas. O site Palavrório encanta à primeira vista. Não dá para explicar, tem que ir e sentir. Divirtam-se!

quinta-feira, abril 08, 2004

Sinfonia dos Cometas*

Emendei meus cabelos
com as linhas de seus dedos
cerzi ponto por ponto
pele e destino no espelho


no compasso do estranho planeta
Bach consertava pontas de estrelas
regendo o brilho das lembranças
afinado à sinfonia dos cometas.



* Esse poema faz parte do romance Elo Primitivo

quarta-feira, abril 07, 2004

Passagens Secretas

Hoje não fui caminhar, tirei a manhã para brincar, assim, eu, meus filhos e uma sobrinha querida, fomos desvendar a caverna na praia da Boa Viagem. A imaginação logo voou, lembrei histórias de Aladim, falei sobre tesouros e palavras secretas. Meus filhos, familiarizados com o universo da fantasia, logo embarcaram no mundo da imaginação. Mas, a sobrinha da mesma idade, foi logo dizendo: “Isso tudo é bobagem, não existe.” Não? Inventei histórias que desafiavam a razão e, já no caminho de volta ela encontrou no chão um elástico de cabelo dourado, correu para meus braços com os olhos brilhando e falou: “Olha, um tesouro!”

Então, questionei: Será realmente imaginação? Olhei para cima e percebi que estava sentada sob um tesouro arquitetônico, o MAC projetado por Niemeyer. Pensei que a beleza estivesse ali, mal sabia o que me aguardava à noite.

À tardinha, calcei o tênis e fui andando à exposição do Lúcio Costa, no MAC. Chegando perto, holofotes chamavam atenção. A música começou a tocar no exato instante em que passei pelo portão. Não havia mais cadeiras disponíveis, sentei no chão.

O volume do som aumentou, um visual deslumbrante da noite se anunciava. A premunição da manhã se materializava.
Quatro moradores de rua enrolados em seus cobertores, com canecas e pratos de alumínios, espalharam jornais e deitaram há um metro de mim. Fiquei tão tocada com a cena, que naqueles 30 segundos revi o mundo e meus valores.

Aos poucos, percebi do que se tratava. Uma dramatização de poemas e poesias. Um dos espetáculos mais lindos que tive o privilégio de assistir.
Estranho, é que logo no início achei semelhante com Cats, musical da Broadway. Estranho, porque não dá para comparar uma superprodução com um grupo de teatro amador. Estranho, porque a razão tenta achar explicação para sentimentos.
A semelhança, percebo, foi a forte emoção em ambos espetáculos. A imprevisibilidade do que senti, uniu-os em meu subconsciente.

Eu me emocionei, a princípio, não sabia bem por quê. Com o desenrolar das cenas, algumas coisas foram desvendadas.
Minha solidariedade pelas classes oprimidas, desprezo pelos corruptos que abortam dignidade da sociedade _ somente pelo prazer de ter e adquirir o que jamais serão. Tiram médicos dos hospitais, professores de escolas, bibliotecas das crianças._ Meu amor pela poesia, pela literatura. Tentativas de falar sobre o que valesse à pena.

Forças ocultas deram-se as mãos .

Pensei na sobrinha. Quando a questionei sobre a veracidade dos tesouros escondidos, eu mesma duvidei. Mal sabendo que horas depois, metros acima de onde estávamos, um dos maiores tesouros seria revelado.
Uma frase que escutei quando ainda era criança me vem à memória: “ A mulher inteligente toma atitudes...” antes de completar o raciocínio, percebo que fazer escolhas inteligentes nunca foi meu foco de vida. Quero caminhos que me levem à felicidade, mesmo que seja através de escolhas estúpidas aos olhos da sociedade. Qual o conceito de inteligência e burrice mesmo?

A passagem secreta, por algum motivo foi por mim aberta. Sentimentos, energias, ventos, mudaram de direção, vieram me convidar a conviver com príncipes e mendigos, reis e lacaios, paixões, amores e projetos que unem seres humanos, seres desejantes, seres amantes a serem sementes que germinarão na mesma terra, embora em momentos diferentes.


Saio da caverna, recebo um anel cor de rosa _ presente feito pela sobrinha e pelo primogênito_ agora sei que a passagem existe. Sento ao lado deles e com as mãos sobre a caixa de miçangas começo a brincar:

Abracadabra, pir-lim-pim-pim, zim-za-la-bim ...

terça-feira, abril 06, 2004

Desconjuro

A porta abriu-se abruptamente. Entrou. Olhos esbugalhados. Mãos tremendo incontroláveis. Cabelos espetados.
Um silêncio repentino tomou conta da sala.
Todos se voltaram para ele. O peão se acalmou e narrou a história pouco-a-pouco.
– Eu tava lá pelas bandas do rancho velho. Pra modo de consertá uma cerca arrebentada. De repente senti uma quentura no pescoço... Minha nossa senhora! Desconjuro! Nunca vi uma coisa daquela! Um pássaro que parecia um sabiá, mas sem nenhuma pena. Ô bicho feio. Peguei o sacho e taquei nele. Parti o cabrunco no meio.
– E daí Zé? Por que está tão espantado? Você matou um Turdídeo impene. - Falou o patrão do Zé, biólogo.
– Num matei isso aí não senhô. Foi um passarinho mermo. Só que o troço veio atrás de mim. Cada enxadada que eu dava ele aumentava de tamanho. Fico maió que um touro. Enfrentei Doutor. Num fui covarde não! Mas o danado me bicou. - Ele mostrou uma ferida no braço.
– Tá bom Zé. Quer ir para casa ver a família, é isso? Na próxima vez vem aqui e me pede. Agora pode ir. - Todos riram. O empregado saiu cabisbaixo pelos fundos.
Ouviram um barulho na porta da frente. O Doutor foi abrir.
– Socooorro!!!!!!

P.S.: O trecho em itálico foi elaborado por Airo Zamoner.

segunda-feira, abril 05, 2004

Poesia

Uma amiga querida recebeu um poema e me enviou por e-mail para que eu "interpretasse". Ao respondê-la, tomei consciência da importância da poesia na minha vida:

Escrever poema é assunto sério, muito sério. É um movimento profundo para dentro. Há ritmo, sintonia, precisão de linguagem, sugestão de imagens, mensagens. Atrevo-me a dizer que há experiência num outro plano.
“No poema a gente dança, na prosa a gente anda”, diz o Jair*. Colocar uma pessoa num poema, ou melhor, perceber que a pessoa está lá, bem no âmago, é declaração de presença onde não cabe um corpo. É tudo, amiga. Estar num poema é ser homenageada da forma mais íntima que as palavras permitem...

* Jair Ferreira dos Santos.

domingo, abril 04, 2004

Ave do desejo

Sexta-feira, seis e meia da tarde. Clara pára de pedalar bem no meio da Lagoa Rodrigo de Freitas. O leve balanço da água gira o pedalinho. Ela abre o livro, lê “A canção de amor de J. Alfred Prufrock" pela décima vez, sempre se emociona, pula páginas, vai para “O enterro dos mortos”. Pequenos peixes saltam ao ar, Clara sorri, adora surpresas.
Admira a beleza do Rio de outro ângulo, o mundo parece seguro dali e seus segredos bem guardados. A lancha atrapalha a aparente harmonia, faz ondas. O cara do esqui leva um tombo e o pedalinho enfrenta turbulências. Um pássaro solitário pousa ao seu lado. Quer companhia. Fecha o livro de T.S.Eliot em câmera lenta, com medo da ave se assustar. Examinam-se minuciosamente.
Um bando se aproxima, o pássaro vai ao encontro dele. Voam em círculos. Delatam Clara ao universo, cantando: “quero-quero! quero-quero! quero-quero! quero-quero!”

sexta-feira, abril 02, 2004

Airo Zamoner

Ele é um escritor consagrado. Generoso, divide seus conhecimentos com iniciantes. É autor de vários livros , entre eles “Dezoito Mulheres, dramas e amores” , que eu degustei vagarosamente na última semana. Criou a Editora Protexto e a Casa do escritor, em Curitiba.
Clicando nos links vocês terão acesso à biografia, aos textos, à editora, aos livros etc. Mas existe algo que não está lá. É um olhar poético, lírico de extrema sensibilidade perante a vida. É uma honra ter o seu nome registrado aqui. E, como aperitivo, para que se sintam tentados a ler o livro todo, o conto de abertura do livro:

CLAUDINE


Ela se destaca nos meus olhos. Saltita alegrias. Nos rodopios, o vestido de rendas e babados restaura harmonias antigas. A minúscula mãozinha agarra o pai carrancudo. Puxa-o na avidez de conhecer os detalhes do mundo. Aos gritinhos, arrasta-o, estimulando-o a ver. Ver e opinar. Dizer como é lindo, como é feio, engraçado, estranho, tudo que se oferece descompromissado aos seus olhinhos curiosos.
Observo e meu coração dói. Vontade de agarrar esse pai pelo colarinho. Sacudi-lo com violência pedagógica. Acordá-lo dos seus trinta, quarenta anos. Forçá-lo a sentir a felicidade que flui gratuita por seu braço indiferente. Gritar para que olhe, uma vez ao menos, para baixo. Fazê-lo ver que a vida berra na alegria voluntária da filha, pesquisadora do mundo.
Contenho-me e ele continua preso à mão que descobre, investiga, apalpa e sorri para o rosto cego. Indiferente, prefere manter-se mergulhado nos mesquinhos corredores de seus problemas. Nem um olhar solidário. Perdido, se mantém nos escaninhos abarrotados de lixo pantográfico, gradeando o mundo para ele travestido de inferno, para ela enfeitado de paraíso.
Ela não desiste. Puxa e o faz com a força do entusiasmo. O pai arqueia o corpo e quebra a indiferença. Por um lapso de tempo imaginei que algo trincaria naquele instante e um sorriso vazaria, senão da boca, ao menos dos olhos. Não! Ao contrário. Uma reprimenda bruta. Um puxão no braço franzino e o abuso de palavras duras.
A menina encolhe o corpo. Recolhe as luzes do rosto. A mão que sobra vai à face, na tentativa falha de enxugar lágrimas salgadas. O choro chega aos meus ouvidos e meu coração se estilhaça.
Ela, que vinha qual batedora, explorando caminhos, agora encurta o corpo. Fica para trás e é arrastada com pressa. Seus passos pequenos não vencem os do pai embrutecido. Tropeça e desaba. É erguida aos ares apenas pelo braço delicado. Seus pezinhos se arrastam e uma sandália escapa. Indefesa, larga o corpo indo ao chão. Último recurso contra a força da cegueira. Impedida pelos soluços, não articula uma só palavra. Aponta o dedinho minúsculo para o calçado fujão e novos impropérios invadem os seus ouvidos puros.
Impossível manter-me estático. Saio correndo da minha indiferença forçada. Chego ofegante. Junto a sandália cor-de-rosa e me agacho. Pego seu pezinho, limpo-o carinhoso e visto o calçado rebelde.
Lenço na mão, enxugo suas lágrimas abundantes. Digo palavras doces. Ela interrompe o choro. O pai emudece.
Falo da beleza do seu vestido de rendas e babados. Explode um sorriso que espanta a mágoa. Eu a ponho em pé e afago suas roupas. Trocamos um olhar profundo. Pergunto seu nome. Ela se atira em meus braços.
– Claudine!
Enlaça meu pescoço e os transeuntes param. O abraço é longo, carinhoso, delicioso.
O pai se desajeita. Ameaça um sorriso de ternura falsificada. Aborta-o. Constrange-se pela evidência. Recompõe-se movido por amarguras e despreparo. Ergue-a ao colo com violência e retoma a caminhada apressado.
Virada para trás, queixo apoiado no ombro do pai, ela vai sacolejando e me acena. Atira-me beijos imensos. Perde-se na multidão.

quinta-feira, abril 01, 2004

1º de Abril



Ele, jornalista, ambicioso, foto da mulher sobre a mesa. Ela, estagiária, fotógrafa, aliança no dedo da mão direita.
Ele, sala reservada. Ela, mesa na redação. Trabalhavam juntos há seis meses. Primeiro, ela ficou à vontade, depois, embaraçada, depois, sentia através dele. Ele ensinava, depois admirava, depois aprendia; depois não sabiam mais nada. E do nada, deram-se as mãos, e do nada estavam nus, e do nada a vontade cresceu, e cresceu tanto que assustou. Ela, transparente, ele, misterioso; ambos na segurança obscura do não poder.
Experimentaram pele, olhos, mãos e cheiros fundidos em sinestesia. Conversavam, riam, a noite chegava e assim, ansiavam pelo dia seguinte. Sabiam quantas gotas de adoçante cada um gostava no café; além disso, não tinham idéia.
Se ela saía da sala, ele adivinhava se era banheiro ou cigarro. Quando ele coçava o queixo, entre um parágrafo e outro, ela ria, esperando um artigo daqueles. E, caso ela tirasse as sandálias enquanto lia o que ele escreveu, ele suspirava aliviado, feliz com a aprovação.
1º de abril. Escolheram palavras para definir afeições. Palavras que se desdobraram em medo, impotência e desperdícios. Palavras contrárias ao que a linguagem dos corpos insistia em mostrar.
Ele não quis arriscar mudanças em sua vida. Ela foi embora. Os dois, num misto de alívio e tristeza.
Ela passou a fotografar em tempo integral. Até que percebeu o olhar dele nas fotos, como se todas fossem tiradas para destinatário certo. Deu um tempo. Freqüentava exposições, shows, concertos e lá, entre o violino e a flauta: ele. O telefone a hipnotizava, mas insistir com quem se mostrou irredutível parecia um erro. Isso, ela aprendeu em outros tombos. E ele nunca telefonou.
Ele pensou na carreira, na mulher e na mulher.
Ela relembrava o deserto no timbre da voz que quantificou o querer. Decifrava entrelinhas nos escritos dele. Teve certeza absoluta de que nada significou. E toda a tristeza embutida veio à tona. Decidiu ir trabalhar na expedição fotográfica em Machu Pichu.
Ele lidava com dificuldades no batente, queria férias. Olhava a cadeira vazia na sala e achou que ela não devia pensar mais nele.
Ela se casou. Ele redobrou as atenções com a mulher. E a vida continuou, como sempre continua.
Um ano depois, na coluna dele, um poema:

Quinta Estação



A sandália jogada num canto da sala
o cheiro do café, 4 gotas de adoçante
mãos folheando livros, folheando cenas
do cotidiano não esquecido
hoje outono amanhã inverno
as folhas não caíram
o frio não chegará
de repente
esquinas vazias, sinais
talvez
amanheça nova estação e
as gotas no café possam ser
apenas gotas
libertas do turbilhão de vontades.


Ele datou: “1º de abril, dia em que todas as palavras merecem o benefício da dúvida”.
Ela recortou o jornal com cuidado, como se as palavras pudessem fugir do papel a qualquer momento e guardou os versos na carteira.